Letargia empresarial, poder global sem precedentes, inércia investigativa jornalística, dados e … voilá: a fórmula porque a verdade está perdendo feio da mentira na mídia global contemporânea.
Em excelente reportagem da semana que passou, a publicação inglesa de marketing The Drum alertou que as marcas podem estar fomentando sites, blogs e conteúdos em redes sociais totalmente fake e criados para distorcer e/ou criar fatos sobre temas prioritariamente (mas não exclusivamente) de política e economia. Alerta, para seu espanto, leitor: marcas podem ter financiado a organização da invasão do Congresso dos Estados Unidos.
Não que façam ou tenham feito isso intencionalmente, mas num mundo em que a difusão programática da comunicação comercial se dá em busca da performance a todo custo, muitas vezes um conteúdo que promove a invasão do Congresso dos EUA pode ter tido apoio de mídia de uma grande marca de consumo qualquer. Sem ela ter a menor ideia disso.
Esse é apenas um dos vieses que temos que olhar, dos inúmeros possíveis, quando se fala da mídia contemporânea e de conteúdos na internet. Particularmente, quando falamos de jornalismo e de conteúdos que tenham direta ou indiretamente influência em nossas vidas e na vida dos destinos da sociedade contemporânea.
Falei sobre isso ao longo de 2020 inúmeras vezes. Entramos em 2021 com motivos ainda mais fortes para voltar ao tema.
O 5o.Poder: as plataformas
Costuma-se dizer que a imprensa é o 4o.Poder. Pois as redes sociais e as plataformas de tecnologia são o 5o.
O banimento definitivo dos canais e conteúdos de Donald Trump de um sem número de plataformas de redes sociais no mundo mostra isso com clareza. Demonstra menos que Trump é um escroto e muito mais como as redes sociais tem um poder de influência desmesurado em tudo o que ocorre hoje na política e na economia globalmente.
Ele usá-las mostra isso. Elas bani-lo mostra isso. Nós estarmos preocupados e acompanharmos esse episódio mostra isso. A mídia registrar o fato com destaque, mostra isso. E elas continuarem a ter esse poder explode isso.
Em profunda e ampla pesquisa da Forbes junto a publishers de vários países sobre o que esperam para seus negócios em 2021, um dos itens de destaque é sua preocupação com o quanto as grandes plataformas como Facebook, Twitter, Google, Instagram e outras vão repassar de receitas a eles. O grau de dependência comercial e, portanto, financeira, dos grandes publishers frente a essas plataformas revela outra faceta da fragilidade (econômica, neste caso) desses publishers e, como decorrência, do destino da cobertura mais objetiva dos fatos e de sua divulgação para seus públicos.
Nenhum publisher é santo. Minha tese de conclusão de curso na universidade, já há 40 anos, defendia isso e não mudei uma linha de opinião desde lá. Ao contrário, a cada dia dessas quatro décadas, só confirmei minha teoria. Todos defendem seus interesses, o que nem de longe está errado, sendo essa a lógica Capitalista da livre iniciativa. E seguem sendo eles os grandes órgãos de informação dos quais dependemos e nos quais precisamos confiar. Se eles se afogarem em seus negócios, um dos grandes pilares da democracia, que é a liberdade de imprensa e de expressão, vai pro ralo junto com eles. E, alerto, estamos vendo hoje esse pilar balançando forte, não é pouco não.
(Um disclaimer aqui … pela mesma regra da livre iniciativa, as plataformas tem preservada, conceitualmente ao menos pelas regras do mesmo sistema, a prerrogativa de fazerem o mesmo: defenderem seu interesse.)
O que é direito, o que é censura e o que não é
O que as plataformas fizeram com Trump é censura? É. É justificável? Em minha visão, sim. Então, todo mundo pode fazer. Não. E quem define os limites do que pode ou não pode ser feito na limitação da liberdade de expressão? Hummmm… Quando esses direitos da livre iniciativa invadem a fronteira dos direitos dos cidadãos e do público em geral, conflitando com eles? Ninguém sabe.
Quem acha que sabe e não está confuso, como diz meu amigo Rene de Paula, é porque está mal informado.
Será um dos grandes debates deste ano. Aguarde.
Jornalismo de gabinete não basta
Falei do viés financeiro, falei do viés das redes sociais, que se transformaram hoje, possivelmente, na maior fonte de informação (inclusive e muitas vezes principalmente de informações falsas) do Planeta, esbarrei no viés ético, e vou falar agora do viés dos meus coleguinhas (e, quem sabe, eu mesmo incluso) de profissão, os jornalistas.
O melhor texto que li sobre a invasão do Capitólio foi de um jornalista inglês do The Guardian. Infiltrado em meio à multidão invasora, ele registrou um relato detalhado, intenso, rico em detalhes, direto do campo de batalha (que é o que foi, uma batalha de uma guerrilha contra a democracia dos EUA), desde o discurso inflamado de Trump em frente à Casa Branca, a marcha até o Congresso, a invasão em si, detalhes dos momentos da multidão já lá dentro do edifício, até sua dispersão.
Deixou claro que aquilo tudo e toda a operação foi fruto de algo planejado com bastante antecedência e num grau considerável de organização prévia.
Foi o primeiro que vi usar a expressão “nazista” na grande imprensa, na comparação do ato com o Terceiro Reich e Hitler. E foi o único que li que fez um trabalho memorável de levantar a bunda da redação, correr o risco do Covid em meio a uma aglomeração gigante sem máscara, para realizar a maior contribuição de todas do jornalismo a sociedade: a reportagem. A reportagem investigativa e reveladora. Aquela que é única porque é a única que não apenas relata os fatos, mas vive-os em sua crueza indistinta dos acontecimentos em sua dinâmica vital de acontecer, algo que ocorre uma e uma única vez apenas no tempo da História. Depois, ah, meu bem, depois é depois. Você não pega aquele cheiro de verdade nunca mais, jamais.
O jornalista Jonh Reed fez isso a vida toda. Na cobertura da Revolução Zapatista, esteve ao vivo com Zapata e acompanhou de perto seus movimentos. Nas lutas dos sindicatos norte-americanos por direitos trabalhistas, esteve em meio aos grevistas. Como enviado especial à Revolução Russa, em 1917, fez um dos melhores trabalhos de cobertura sobre revoltas e revoluções de toda a história do jornalismo, que resultou na obra Os 10 Dias que Abalaram o Mundo, que virou, como todos sabemos, inúmeros filmes. Era o jornalista mais bem pago dos EUA na sua época.
Sim, ele era de esquerda, mas não importa. Ele era reportagem. O repórter do The Guardian não é de esquerda e ele é, igualmente, reportagem.
E porque estou dizendo tudo isso? Porque contra a mentira há apenas um único antídoto: a verdade. A verdade vivida e não a realidade da distante e confortável cadeira e ar condicionado das redações. Ou, hoje, das casas dos profissionais de imprensa mundo afora.
Tô falando porque acho fácil? Não, tô falando porque já fiz.
Fui para a Nicarágua e fiz isso eu mesmo, ao vivo e a cores, durante a revolução sandinista. Ouvi balas zunindo bem perto de mim, andei em veículos do exército sandinista, entrevistei seus mais importantes líderes, algo que ninguém da grande imprensa do Brasil fez.
Eu era de esquerda? Sim, era. Mas de novo, isso não tem a menor relevância para meu ponto aqui.
Fiz a mesma coisa frequentando, por semanas, ao vivo, cultos da igreja pentecostal, quando ela começou a se instalar no Brasil. Vivi a realidade de cada “milagre” dos pastores lá, nos templos. Vi, a centímetros de distância, a fé cega nos olhos dos seus desprotegidos e fiéis seguidores. Senti esse tal cheiro da realidade de perto, muito perto. E tenho a reportar que ele, nem sempre, é agradável ou doce.
Minha reportagem foi, na época, capa da revista IstoÉ, de Mino Carta, e editada, honrosamente para mim, pelo Nirlando Beirão.
Ela registrava, como nunca antes alguém havia registrado na imprensa e, menos ainda, tendo vivido como vivi a realidade tão próxima, o nascimento de um fenômeno que hoje sabemos em que resultou.
Foi minha primeira reportagem para a grande imprensa e meu debut como jornalista. Meu primeiro trabalho na profissão e eu nem havia terminado a universidade.
Falo de mim não para enaltecer meus méritos – e eles, inegavelmente, existem, sem qualquer falsa modéstia. Falo de mim para me qualificar para criticar os outros.
As redes sociais levam uma vantagem desmesurada sobre o jornalismo de gabinete, porque elas SÃO a realidade. Elas SÃO o fato em si e per se, e não sua interpretação conceitual e analítica.
Aliás, elas SÃO o fato social e sociológico mais relevante do século XXI. Até o momento, ao menos.
As interpelações brilhantes dos nossos analistas de plantão seguirão sendo sempre vitais para decifrarmos e entendermos melhor os fatos. Mas será o jornalismo investigativo da reportagem o único que poderá fazer frente a mentira fake.
É sobre dados, imbecil!
Outro aspecto a ser analisado aqui é a, hoje, já inadmissível letargia dos grandes órgãos da imprensa em entender que o mundo lá fora é um mundo de dados. É outra vantagem deslavada das redes sociais diante da gestão empresarial lerda e anacrônica da grande imprensa (da imprensa especializada também) diante dos avanços da transformação digital.
Tardiamente, mas aos poucos, vejo as empresas do setor, que serão as únicas a zelarem pela informação mais confiável dos fatos, se mexerem e começarem a incluir a tecnologia em sua gestão estratégica e mercadológica, e a sua gestão empresarial de um modo geral.
Mas tá lento. Aquele chifrudão neo-nazista que roubou a imagem da invasão do Congresso dos EUA e apareceu em todas as fotos da mídia sabe disso mais e melhor do que muitos dos dirigentes da grande imprensa do mundo.
Eles estão ganhando, amigos. Até agora, de barbada. E de chifres.