Esqueça as tendências que você lê por aí sobre o futuro de nossa sociedade. Enquanto não resolvermos ou pelo menos mitigarmos uma questão muito mais profunda e estrutural, não haverá futuro para a raça humana
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Criatividade não é uma habilidade apenas do futuro como dizem por aí. É do passado e, principalmente do presente. A criatividade é e sempre foi a principal aliada do ser humano. A palavra-chave de todo o sistema chamado Natureza, do qual ainda fazemos parte, querendo ou não, é a palavra SOBREVIVÊNCIA. E a criatividade é uma ferramenta biológica de adaptação e, portanto, de sobrevivência.
O ser humano só deu o salto evolutivo que deu porque para se adaptar, usou uma ferramenta muito especial: a criatividade. A criatividade é a ferramenta das ferramentas, porque graças a ela, criamos todas as outras.
Nossa criatividade atingiu esse patamar assombroso porque em algum momento de nosso processo evolutivo, um de nossos ancestrais desenvolveu a capacidade de raciocinar. O ovo ou a galinha, a racionalidade e o crescimento do nosso consciente foram os que realmente nos catapultaram ao topo da cadeia alimentar, já que o inconsciente, como veremos a seguir, não mudou nada. Esse fenômeno criou um terreno fértil para a geração de ideias originais na busca por soluções de problemas, já que o processo criativo é movido por um esforço de vontade, cuja responsabilidade é do consciente. Sem o desejo de criar, permanecemos no automático, território do inconsciente.
Em parceria com o pensamento racional, a criatividade foi responsável direta pelo nosso descolamento da vida selvagem, acelerando nosso desenvolvimento tecnológico e civilizatório. Graças a ela, somos evoluídos. Evoluídos? Será mesmo? Não, não somos evoluídos. Somos envernizados.
Nosso cérebro pode até ter evoluído nos últimos séculos em algumas habilidades específicas, mas não em sua estrutura básica de funcionamento. Não em sua essência. O software pode ter sido atualizado. Mas o hardware permanece intacto.
Basta pensar o seguinte: se hoje por algum motivo se dissolverem as instituições como governo, o poder legislativo, a justiça e a polícia, amanhã mesmo começará a barbárie. Pessoas se unindo para saquear mercados e usando de violência extrema na defesa de sua sobrevivência e de seus pequenos grupos.
Misturando um pouco de história com ciência
- Nosso planeta surgiu há 4,5 bilhões de anos.
- O primeiro primata surgiu há 55 milhões de anos
- A linhagem hominídea divergiu da linhagem do macaco há 6 milhões de anos.
- O mais antigo hominídeo conhecido, foi datado em 4,4 milhões de anos.
- O Homo sapiens, existe há cerca de 200.000 anos.
- A primeira civilização conhecida foram os Sumérios em 4.000 A.C, ou seja o homem civilizado existe, pelo menos até onde se sabe, há mais ou menos 6 mil anos.
Não precisa ser muito bom em matemática pra concluir que em 6.000 anos não é capaz de gerar uma mudança significativa levando-se em conta a lista acima.
Ainda não se convenceu? Então vamos lá.
Pense nos 10 Mandamentos, que segundo historiadores, foram citados pela primeira vez em 622 a.C.. Entre outras regras, feitas para controlar os instintos animais da população, podemos selecionar as seguintes: honra teu pai e tua mãe, não matarás, não adulterarás, não roubarás, não mentirás e não cobiçarás. 2.623 anos depois, parace que as Tábuas da Lei continuam atualíssimas. Ainda não está convencido? Sigamos em frente.
A primeira versão dos 7 Pecados Capitais foi apresentada no século VI pelo Papa Gregório Magno mas a lista final ficou a cargo de São Tomás de Aquino no século XIII. Relembrando: luxúria, soberba, preguiça, inveja; gula, avareza e ira. Você há de concordar que chegamos ao século XXI invictos. E fomos mais longe: não só mantivemos orgulhosamente os 7 pecados como ainda criamos alguns novos. Somos criativos, não?
Porém, os Pecados Capitais não são, em sua essência, pecados de fato. São, na verdade, ferramentas a serviço de nosso instinto animal de sobrevivência, cada um com uma função específica. Foram extremamente úteis no desafio de sobrevivência que experimentamos desde os primórdios. O que a igreja tentou com esta lista, foi, mais uma vez, inibir esses peculiares impulsos que, numa sociedade civilizada, são claramente deletérios. Em vão, como todos sabemos.
Saímos da floresta mas ela não saiu de nós
Se observarmos o comportamento animal na Natureza exclusivamente sob as óticas morais e éticas da sociedade moderna, nos sentiremos horrorizados com a tamanha iniquidade destes depravados de caráter duvidoso. Mas o conceito de pecado não existe na Natureza. Foi inventado por nós justamente para tentar controlar o frenesi hormonal que ainda nos comanda de forma tão evidente. Na Natureza, o único pecado é não sobreviver.
Pode ter certeza: foi justamente o mesmo instinto de sobrevivência dos animais irracionais que nos trouxe até aqui. Ele é parte fundamental de nossa vitória contra as forças da Natureza até agora. Ainda somos totalmente dominados e controlados por ele. O fato de termos acimentado a floresta, não nos afastou dela.
Então, como podemos ser verdadeiramente civilizados se a própria ideia de civilização está diretamente relacionada à eliminação destes apetites animalescos que ainda manifestamos com tanta intensidade? Para explicar isso é preciso começar dizendo que somos governados por duas entidades diferentes e interdependentes: o consciente e o inconsciente.
Com a palavra, os mestres
Para não incorrer no risco de dizer algo que não coadune com a visão científica do assunto, recorro a três especialistas na área para explicar quem são estas duas entidades:
- Segundo Freud, inconsciente fica escondido de nós, mas que se manifesta sem percebermos no nosso comportamento.
- Jacques Lacan disse que o consciente e o inconsciente são diferentes e que o segundo é a base da existência.
- Para Melanie Klein os instintos, impulsos e desejos são consequência do inconsciente.
A nossa percepção de identidade pessoal está no consciente. Acreditamos ser aquilo que pensamos. Mas não é bem assim. Nosso verdadeiro eu está no inconsciente, que, pra nossa felicidade ou infelicidade, não temos praticamente nenhum acesso ou controle.
Mesmo tendo ganhado espaço e força em nosso cérebro, o consciente continua tendo muito pouca influência sobre nosso comportamento, sobre quem somos na essência, sobre como reagimos sob estresse.
O consciente é contemporâneo. Consegue se adaptar rapidamente às condições existentes. Já o inconsciente, como vimos, está ainda há séculos de distância. Um evolui com certa facilidade e o outro se movimenta na velocidade que a Natureza determina.
Qual é a velocidade da Natureza?
Uma pesquisa apoiada pela National Science Foundation e pelo Research Council of Norway, com colaboração de pesquisadores da OSU, da Universidade de Oslo na Noruega e da Universidade de Pretória na África do Sul, concluiu que uma mudança evolutiva duradoura leva cerca de um milhão de anos.
A função de ambos – consciente e inconsciente -, definida por nosso genoma, é tentar garantir nossa sobrevivência a qualquer custo. Um controlando o indivíduo de forma cartesiana, seguindo à risca sua rígida programação e preocupado com a sobrevivência a longo prazo. E o outro, flexível e adaptável às circunstâncias imediatas. Um trabalho em dupla que foi inegavelmente bem-sucedido por um longo período de tempo.
Chegamos a uma encruzilhada
Precisamos de novas ferramentas, Nossos instintos já não nos servem mais. Inclusive nos atrapalham, podendo até comprometer nosso futuro.
Estamos na era dos algoritmos, que está criando milhares de bolhas, isolando grupos e, pior, estimulando o conflito entre elas, já que as bolhas são formadas por indivíduos controlados exatamente por seus instintos. A qualquer momento essas bolhas vão estourar e nossa espécie terá de enfrentar algo muito mais nocivo que a covid. Agências de inteligência estadunidenses preveem um 2040 nada agradável, com profundas crises políticas e riscos à democracia.
Futuristas falam do trabalho no futuro, aparelhos, serviços e organização social, mas não falam do principal: a chamada natureza humana e sua indissociável – e significativa – parcela animal. Fala-se de singularidade, mas não de civilidade. Fala-se de evolução tecnológica, mas não de evolução, digamos assim, ética e moral.
Existem recursos para enfrentar esse desafio?
Existem. Investe-se bilhões para entender o ser humano. Estudos profundos em psicologia e neurociência. Pra ajudar na evolução real da nossa espécie? Não. Para vender coisas para esses pobres animais.
Mas nem todo mundo é tão pragmático. A pedagogia moderna está focada nas habilidades, nas competências e na construção de uma visão moderna e civilizada e até em criatividade. O problema é que essa estrutura está sendo montada sobre fundações que contradizem sua própria proposta. É como plantar flores num terreno envenenado. Não há como conciliar uma construção racional civilizada sobre uma base movida eminentemente a hormônios. Este modelo, por mais inteligente e bem-intencionado, não ataca a questão primordial: a pacificação profunda ou até mesmo definitiva de nossa fera interior.
Não é demonizar a tecnologia. Ao contrário. É tentar trazer nosso inconsciente para o mesmo patamar. Afinal, nossa civilização não vai evoluir no sentido estrito da palavra se não trabalhar na questão estrutural de nosso cérebro, educando ou reeducando nosso inconsciente. Não vai existir evolução real sem isso. E esperar 1 milhão de anos não é uma opção. Não importa se daqui a alguns anos vai existir a privada wi-fi ou se vamos colocar implantes de silicone no cérebro ou se o miojo vai ficar pronto em apenas 15 segundos. Se não houver essa mudança, continuaremos, impiedosamente, os mesmos.
Mas como toda ideia nova e ousada, a busca pela evolução real envolve uma enorme quantidade de obstáculos a se transpor. É preciso responder muitas perguntas que jamais foram feitas. Por exemplo: os instintos animais são emoções. Gostamos de umas e desprezamos outras. Não queremos o ódio, mas não vamos abrir mão do amor. A inveja, a falta de empatia, a soberba devem ser eliminadas, mas o prazer em ajudar os outros precisa ser mantido. Mas será que é possível fazer esta separação?
Outra: será possível controlar as emoções a ponto de diminuir sua influência em nosso comportamento?
Mas a questão primordial é mais complexa: não são justamente as emoções que nos fazem humanos? Não são as emoções que nos fazem ser o que somos? Neste caso, acredito que, em nome de nossa sobrevivência, talvez tenhamos de nos transformar em outra coisa.
Homo sapiens já não é mais suficiente
Precisamos urgentemente acelerar nosso processo de evolução. Precisamos do ser humano 2.0, um Homo civilis ou Homo pacificus ou Homo magnus, não importa o nome, mas o modelo mental precisa ser transformado.
Estamos vivendo a revolução digital. Mas o que estamos precisando mesmo é de uma revolução emocional. Demos um salto há milhões de anos. Precisamos dar outro agora. Estamos enfrentando nosso maior e mais complexo desafio. O homem já subverteu tanta coisa. Já surpreendeu tanto. Já quebrou tantas regras. Viramos especialistas em enganar a Natureza. Podemos enganar mais uma vez. E para isso precisamos de nossa maior e mais poderosa arma. A mesma que nos trouxe até aqui: a criatividade.
Por isso reafirmo: a criatividade não é a habilidade do futuro. É a única habilidade que, bem utilizada no presente, pode salvar o nosso futuro.
Este artigo foi a base de uma palestra ministrada no Dia Mundial da Criatividade, em 22 de abril de 2021, que você pode assistir abaixo