Pyr Marcondes na Exame: A crise de identidade da Mídia

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Pois não é que séculos depois de sua adolescência, a Mídia nos veio a viver sua maior crise de identidade, já gente feita, consolidada e madura?

Mídia, apenas para falarmos a mesma língua aqui, é a denominação semiótica daquilo que está no meio entre o emissor e o receptor. Na prática e para o que nos interessa aqui, é a interlocução dos emissores de informação com suas audiências, dos gestores da comunicação com seus públicos. Tudo viabilizado pelo capital corporativo, os anunciantes, que pagam essa conta.

Pois essa Mídia sempre foi a voz do dono da mídia, a sua própria verdade feita conteúdo, empacotada, distribuída, consumida…. e deu.

Pois não é que deu ruim?

De anos para cá, a verdade mudou de mãos e nós, cidadãos, assumimos o comando das nossas inúmeras verdades, sejam elas quais forem, enquanto a distribuição ganhou tantas múltiplas personalidades, que o que durante séculos era tão certo, ficou hoje criticamente duvidoso.

A história não nos esconde que a geração, produção e distribuição do conteúdo informativo e reflexivo disseminado pelos diversificados canais da comunicação de massa, acabou por concentrar o comando da narrativa dos fatos e análises desses mesmos fatos nas mãos de um grupo de elite. O capitalismo quis assim.

Pois concordemos ou não (e podemos discordar), gostemos ou não, devemos exatamente a essas iniciativas pioneiras, que deram ensejo ao que chamamos de mídia contemporânea, a criação de veículos essenciais às complexas sociedades de hoje, onde informação é o feijão com arroz da nossa convivência, do conhecimento cotidiano sobre nós mesmos e de tudo o que acontece no mundo a nossa volta.

Tem viés? Tem. É insuspeita? Não. Na verdade, nunca foi.

Mas segue sendo essencial.

No novo contexto da Era Digital, em que todos somos mídia, a Mídia contemporânea precisa ser, para as suas audiências e para as marcas que a suportam, as várias vozes de seus públicos e a narrativa das empresas com as quais comercialmente dialoga.

Precisa deixar de ser unívoca para sobreviver enquanto espécie e, darwinianamente, adaptar-se a um mercado em transformação profunda, recorrente e radical.

Precisa mimetizar-se em vários canvas: físico, eletrônico e digital.

Precisa ser a voz de uma diversidade social inaudita e ser ainda intérprete das corporações, e é por isso que muitos grupos de mídia têm hoje departamentos internos de branded content, produzindo informação em nome das empresas, que por sua vez, também precisam ter voz. De novo, o capitalismo quis assim.

Tudo isso sem deixar de ser a si mesmos, reafirmando seus princípios e a essência daquilo que acreditam.

A revolução digital mudou a vida e os costumes. Mudou você, mudou eu. Mudou tudo a nossa volta e o desafio da Mídia hoje é ser todas essas mudanças ao mesmo tempo, e reafirmar-se como origem e destino do seguro, numa sociedade conectada e contaminada pelo fake dominante.

Houve um dia, e já lá se vão 12 anos, em que o professor, escritor e pensador contemporâneo Clay Shirky lançou seu seminal livro “Here Comes Everybody – The Power of Organizing Without Organizations”, e ali imaginamos que entraríamos numa era da colaboração onipresente e generosa, em que todos, sem organizações centralizadoras, sem controle mas coesos e amistosamente unidos pela internet, construiríamos uma nova sociedade, democrática por essência e inclusiva por natureza. A Mídia estaria então vivendo seu possível ocaso como guardiã das máximas verdades.

A obra, como o nome revela, fala de um novo mundo interativo e onipresente, em que todos nós, quase sem exceção, trocaríamos impressões de tudo e sobre tudo, vivendo, a partir de então, felizes para sempre.

Sem ter esse objetivo e sem ser essa sua intenção original, o brilhante professor Shirky criava ali mais uma distopia e menos, como pretendia ele em sua essência acadêmica, um novo tratado da sociologia conectada.

Distopia porque o mundo que imaginou, na vida efetiva da nossa sociedade global, acabou por tornar-se um pesadelo de Hieronymus Bosch. O “everybody” ao qual ele se referia tornou-se uma terra de “nobody”. E nessa terra de ninguém nada distópica e cruelmente verdadeira, nos transformamos em uma sociedade conectada, interativa e colaborativa da mentira e da calúnia.

Pois se todos viramos mídia e se todos viramos o que bem entendemos, online e em todas as partes, qual então a função da Mídia agora?

Se por um momento ficamos em dúvida, os mais recentes anos nos recolocaram na trilha original, e de uma tradição que as democracias deveriam prezar antes e acima de tudo: aquela que nos faz compreender, de uma vez por todas, que os mais essenciais pilares do jornalismo e do conteúdo, mesmo com todos os vieses citados acima, são os que ainda melhor refletem o drama da nossa vida em sociedade. E aí me vem à cabeça as grandes marcas da grande Mídia, aquelas nas quais ainda mais nos enxergamos. E aquelas com as quais, mesmo em meio a sua mais dramática crise histórica de identidade, paradoxalmente e de alguma forma, ainda mais nos identificamos.

Nós, contemporâneos seres erráticos, em busca das hoje tão fugidias certezas e de nossas tão escassas e incertas … hummm… verdades.

(*) Este artigo foi publicado originalmente na minha coluna da revista Exame. https://exame.com/

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