CVC Corp é um dos maiores grupos de viagens e turismo da América Latina e, como tal, vem sofrendo os fortes impactos da pandemia da Covid-19. As restrições impostas à movimentação de pessoas levaram o grupo a suspender por três meses investimentos em marketing em suas nove empresas. Com cancelamentos e vendas em baixa, a jornada de trabalho foi reduzida pela metade e vagas foram congeladas. Mas em ao menos uma área as contratações continuaram. O orçamento de R$ 150 milhões para tecnologia, duas vezes maior que o de dois anos atrás, foi mantido, diz Marcelo Quintella, diretor executivo de produto digital do grupo. “Temos o objetivo de sair em breve com a Nova Plataforma CVC para 100% do tráfego tanto para CVC.com quanto para Submarino Viagens”, afirma o executivo. “A expectativa é de estarmos num estágio avançado de desenvolvimento quando houver a retomada das vendas para que possamos impulsionar o resultado da companhia”.
A pandemia teve o efeito de uma onda de choque sobre os negócios e gerou uma infinidade de incertezas sobre como será o mundo pós-2020. Ninguém sabe ainda quando a insegurança causada pelo vírus e a possibilidade de longas quarentenas ficarão no passado. Há, como quase sempre, empresas
que serão fortalecidas pelas mudanças conjunturais e estruturais geradas pela tragédia. A maioria ou quebrará ou terá que se adaptar para enfrentar um período difícil antes de voltar a crescer. Na avaliação de consultores como Oliver Cunningham, sócio da KPMG no Brasil, no entanto, uma coisa tem ficado evidente. “Quem não tinha capacidade de operação remota sofreu mais. A tecnologia não garante a sobrevivência, mas deixa aberta a possibilidade de lutar por ela”, afirma.
É o que vem acontecendo na CVC Corp e em outras companhias, como a ClassPass. A ClassPass é uma plataforma que permite que os assinantes e empregados de empresas clientes usem academias e serviços de bem-estar de terceiros. Sempre teve como foco “agregar experiências offline”, afirma Dhaval Chadha, head de expansão da companhia para a América Latina. E vinha criando material em vídeo, disponibilizado online, para complementar as experiências em academias e outras empresas parceiras, diz o executivo.
Com a pandemia e o início do período de confinamento, no entanto, a companhia decidiu acelerar o processo de digitalização, afirma Chadha. Além de liberar o acesso aos vídeos já gravados, criou em sua plataforma uma área para que empresas parceiras possam vender aulas transmitidas por streaming. “Estamos tendo que nos adaptar, até porque não está evidente quando as coisas vão voltar ao normal”, afirma o executivo. “Estamos usando o online para ajudar a manter vivas as academias e o hábito dos usuários, enquanto nos preparamos para atuar em um cenário que já não será o mesmo de antes da pandemia”.
Em tudo que tange à transformação digital, a pandemia é um catalisador muito importante, afirma Cunningham, da KPMG. “Havia muita gente experimentando. Agora, virou questão de sobrevivência”, diz. “As empresas que já tinham projetos em curso, aceleraram. As que estavam atrasadas, acabaram sentindo a necessidade de transformação”, afirma Alberto Luiz Albertin, coordenador da linha de TI do mestrado em competitividade da FGV EAESP.
A rede de supermercados Dia%, que havia abandonado o modelo de vendas online em 2019, voltou atrás e fechou uma parceria com a iFood para entregas. Escolas de todos o país migraram as aulas para plataformas de videoconferência, como o Zoom, e a telemedicina, combatida até o ano passado pela classe médica, virou realidade. Bares e restaurantes aderiram
a aplicativos de entrega, como Rappi e Uber Eats, ou criaram os próprios serviços de delivery. Segundo dados da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (Abcomm), antes da Covid-19, eram abertas, em média, 10 mil lojas por mês na internet brasileira. Com o início da pandemia, em pouco mais de dois meses, foram criados 107 mil novos varejos online no país.
Houve também quem descobrisse formas de usar ferramentas mais simples, como o Whatsapp, para vendas online e relacionamento. Carlos Arruda, professor na área de inovação e competitividade da Fundação Dom Cabral, conta o caso de uma pequena rede de franquias de O Boticário, do Grupo Gerbara, de Manaus, que vem usando como exemplo em eventos de troca de experiências com outras empresa sobre como lidar com a crise. “As equipes foram requalificadas para entrar ativamente em contato com os clientes pelo aplicativo”, diz. “Com isso, as lojas, mesmo fechadas, estão vendendo o mesmo que antes”.
Novas perspectivas
É uma situação ainda rara, a do franqueado manauara. A maior parte das empresas está longe de recuperar o volume de vendas. Mas, na medida em
que vão se adequando, muitas já começam a avaliar as perspectivas de diversificação abertas por novos canais de venda, de relacionamento com os clientes e de produtos e serviços desenvolvidos na quarentena.
A rede francesa de escolas de programação Le Wagon, por exemplo, colocou no mapa a possibilidade de explorar o meio online, diz Mathieu Le Roux, responsável pela companhia no Brasil. A escola já tinha uma plataforma fechada onde eram realizados os exercícios e avaliações nas aulas presenciais. Mas o modelo era baseado em imersões por semanas em boot camps. Com a Covid-19, em poucos dias, a empresa adaptou a plataforma para o online, usando o Zoom. “Aulas remotas não estavam nem no nosso roadmap. Mas agora que vimos que o modelo funciona, passou a ser uma opção na mesa”, afirma. “Estamos discutindo a viabilidade de turmas 100% online, ou de alunos online em turmas presenciais”.
Outro caso é o da 100 Open Startups, plataforma que aproxima startups de grandes corporações. Entre as mudanças adotadas não previstas no plano de negócios está a digitalização de uma das principais ofertas da casa, os speed datings, encontros de negócios entre startups e grandes empresas. Normalmente, os speed datings eram realizados em eventos presenciais, diz Bruno Rondani, fundador e CEO da 100 Open Startups. Com a pandemia, empresa adaptou o modelo para realizar os encontros online.
No Sidia Instituto de Ciência e Tecnologia, a criação de um aplicativo para monitorar a saúde dos empregados em home office, ajudá-los a identificar precocemente os sintomas da Covid-19 e orientá-los sobre como agir em caso de suspeita de contaminação pode dar origem a um novo produto. “Embora o app (batizado InfoSaúde) tenha surgido de uma necessidade interna, poder ser adaptado à realidade de outras instituições”, diz Chris Lee, superintendente do Sidia.
É um movimento visível mesmo em setores normalmente associados à burocracia, como os cartórios. Segundo Flaviano Galhardo, presidente do
Colégio de Registro de Imóveis do Brasil, entidade que reúne registradores de imóveis de todo o país, o trabalho de modernização da atividade começou em 2010. Primeiro, com ferramentas para consulta de informações pela internet, depois com serviços de registro. Mas, por questões culturais, como o apego ao papel no setor imobiliário, as ferramentas eram pouco utilizadas, conta. Com a pandemia, muitos cartórios de registro de imóveis passaram a atender apenas de forma remota e a demanda pelas ferramentas online explodiu. O uso do e-protocolo, que permite encaminhar pela internet uma escritura para registro, aumentou mais de 400%, afirma.
“Acreditamos muito que essa tendência se manterá depois do fim da pandemia”, diz. Para Fernando Teixeira, diretor executivo de tecnologia da consultoria Accenture na América Latina, as mudanças de hábitos de consumo a adoção de novas tecnologias e a experiência com o trabalho remoto terão ainda desdobramentos de curto, médio e longo prazo. No curto, as empresas que investiram às pressas para se adaptar terão que pensar em como garantir que as mudanças sejam sustentáveis, afirma Teixeira. No médio e longo prazos, a pressão por custos menores que virá com a crise tende a levar à busca por soluções mais flexíveis, como os serviços em nuvem e outras soluções virtuais, avalia.
Empresas como a VS-Datta Imagem, dona da plataforma de assinaturas Dattasign, já vem sentindo a aceleração da demanda. Segundo Válber Azevedo, CEO da empresa, além de negócios menores, a pandemia deu impulso às negociações com uma grande companhia do setor de telecom, através de uma empresa parceira. Ele conta que o processo técnico para a
compra de um sistema de assinatura de documentos internos, contratos e aceites com fornecedores foi acelerado. “Sentiram a necessidade de adoção do sistema”, afirma.
Sair na frente, de fato, tende a garantir uma vantagem importante. A profundidade da crise, ainda incerta, pode afetar a capacidade das empresas de investirem em transformação digital, diz Teixeira. E, em um cenário econômico volátil, a velocidade e a precisão na tomada de decisões, com base em grande volume de dados, facilitada por sistemas de analytics, será crucial para a competitividade, afirma. “A velocidade e a capacidade de transformação vão determinar quem fica e quem vai perecer”, sintetiza Arruda, da Dom Cabral.