O que é acessibilidade digital e porque você deveria se preocupar com isto agora

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Por Afonso Celso Dutra Acauan Filho* e Giovanne Bertotti**

O mundo está cada vez mais digital. De acordo com o Digital 2020 October Global Statshot Report, organizado pelo analista Simon Kemp, compilando dados de fontes como Banco Mundial, consultorias como GlobalWebIndex e a ONU, havia 4,66 bilhões de pessoas com acesso à web em outubro de 2020, ou 59% de toda humanidade. Desse total, 91% chegam à internet por dispositivos móveis.

O ano da pandemia acelerou os processos de transformação digital por causa do distanciamento social. Hoje dá para fazer quase tudo online: supermercado, pedir comida dos restaurantes, reservar passagem de avião, comprar qualquer tipo de produto no varejo, registrar Boletim de Ocorrência, pagar contas, festejar o aniversário da avó… A lista não tem fim.

Todos esses serviços possuem graus variados de usabilidade. Pedir uma pizza no app é moleza, já fazer compra de supermercado é mais complexo. Mas moleza ou complexo pra quem?

A questão da usabilidade é estratégica. A experiência precisa ser o mais intuitiva possível pensando que pessoas acessam por dispositivos diferentes, com qualidade de conexão as mais diversas, com maior ou menor familiaridade às tecnologias. Por exemplo: crianças pequenas têm rendimento menor no ensino online; idosos acham em geral mais difícil lidar com a tecnologia.

Além deles, há um grupo sistematicamente deixado à margem: as pessoas com algum tipo de deficiência, que também são consumidores como os demais.

Quem é esse público?

Muito além da dificuldade motora, nossa sociedade olha pouco para as dificuldades dos idosos, dos estrangeiros, de quem tem deficiência visual, auditiva, intelectual.

Até mesmo condições como dislexia e autismo representam barreiras. Famílias de crianças autistas processaram a Disney porque a empresa criou um programa especial de acessibilidade aos parques que submeteu crianças autistas às longas filas de espera tradicionais na alta temporada. Só que, em autistas, isso pode gerar uma crise de ansiedade severa.

Ligado à ONU, o The Washington Group on Disability tem se esforçado para desenvolver metodologias que unifiquem a classificação dos múltiplos níveis de deficiência. Mas admite que é preciso antes identificar o volume total desse universo para melhor atender cada grupo.

Pelos cálculos do Banco Mundial, cerca de 1 bilhão de pessoas, ou 15% da população global, experimenta alguma forma de deficiência. Pelo censo do IBGE de 2010, há 45,6 milhões de brasileiros, ou 23,5% da população, nessa condição, sendo que 12,7 milhões experimentam grande dificuldade ou não conseguem de forma alguma realizar ações como ver, ouvir, caminhar… Esse público tem o mesmo direito de acesso à informação e a lei brasileira o classifica como consumidor hipervulnerável.

A navegação obscura

Em 11 de dezembro de 2008, o W3C, consórcio responsável pela governança global da Internet, publicou uma atualização de seus guidelines para tornar a internet mais acessível para pessoas com deficiência, documento conhecido como WCAG 2.0 (hoje, na versão 2.1).

Doze anos depois, a adesão a essas regras ainda é incrivelmente pequena. A organização WebAIM (Web Accessibility in Mind) produz um relatório anual avaliando 1 milhão de home pages dos sites mais populares do mundo de acordo com os critérios do WCAG 2.0 – Web Content Accessibility Guidelines – principal grupo que define as diretrizes de acessibilidade digital no mundo. Em fevereiro de 2020, 98,1% tinham erros que podem ser detectados de forma automática que representam barreiras para esse público.

No Brasil, o Movimento Web para Todos e a plataforma de dados BigDataCorp avaliaram 14,65 milhões de endereços no país e concluíram que apenas 0,74% atendiam a todas as diretrizes do WCAG. Os sites educacionais, de governo e de notícias ficaram com índices melhores (acima de 3%), enquanto os sites de e-commerce aparecem com pouco mais de míseros 1% de conformidade.

Foi realizado um estudo no Reino Unido tentando precificar as perdas potenciais das empresas que não têm sites acessíveis. Os resultados foram contundentes: 71% dos consumidores saíam dos sites ao encontrar barreiras; 82% aceitavam pagar mais caro no concorrente acessível; esse “clique away” representou 10% do faturamento do e-commerce britânico naquele ano (£ 75 bilhões).

Princípios de um site acessível

Quais são os fundamentos para se ter um site acessível? Ele deve ser:

  1. Perceptível: os conteúdos precisam estar em mais de uma forma, como textos descritivos das imagens, legendas em vídeos, robô de libras.
  2. Operável: todos os usuários conseguem realizar as diversas operações sem barreiras, o que inclui navegação pelo teclado. A velocidade da página precisa ser equilibrada: nem rápida ou devagar demais. E evitar recursos que sejam gatilho para ataques epiléticos, como o excesso de cores, iluminação ou uso de pop-ups.
  3. Compreensível: os textos devem ter sentenças claras e objetivas. É fundamental fazer uma escolha adequada de fontes. Assim, pessoas com dislexia, deficiências intelectuais, dificuldade de leitura, podem consumir o conteúdo.
  4. Robusto: a programação do site precisa estar apta a rodar as tecnologias assistivas existentes e tornar o site navegável pelo teclado, o que é imprescindível especialmente para pessoas com deficiência motora.

Além disso, há uma série de recomendações a partir da qual se chega a um nível de conformidade organizado da seguinte forma:

  • Nível A (o mínimo de conformidade), a página web satisfaz todos os Critérios de Sucesso de Nível A, que implica haver ainda barreiras significativas.
  • Nível AA, a página satisfaz todos os Critérios de Sucesso de Nível A e Nível AA, ou seja, o site é acessível para a maioria dos usuários sob a maior parte das circunstâncias e utiliza a maioria das tecnologias.
  • Nível AAA, a página web satisfaz todos os Critérios de Sucesso anteriores e se dedica a garantir um nível otimizado de acessibilidade.

A questão legal

A pergunta que decorre da performance dos sites é: não deveria haver regulamentação a respeito disso para dar mais segurança jurídica?

Pois pasmem: ela existe!

O Brasil possui a Lei Brasileira de Inclusão (13.146/2015), que define a pessoa com deficiência como aquela com impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

No artigo 63, a lei deixa claro que a acessibilidade é uma obrigação para sites. A discriminação de pessoas com deficiência pode ser alvo de multa e prisão de até 5 anos.

Nos EUA, o American Disability Act é menos específico que a lei brasileira, mas a Suprema Corte deu uma grande vitória para a luta pelos direitos dos deficientes ao negar o apelo da Domino’s Pizza, que foi processada por Guillermo Robles, deficiente visual, por não ter conseguido fazer um pedido nem no site nem no aplicativo utilizando softwares para leitura de tela. A Justiça americana tem lidado com milhares de casos parecidos nos últimos anos.

O que define a palavra acessibilidade senão uma via de duas mãos, por onde cada um pode ir e voltar? Pensar em acessibilidade é aceitar que o mundo pode ser igual para todos. Os pessimistas acreditam que se trate de utopia. Nós achamos que é uma questão lógica. Se nem os valores ético ou jurídico forem suficientes, há o pragmático. Você deixaria 50 milhões de pessoas fora do mercado? Ou pensando em termos globais, 1 bilhão?!

*Afonso Celso Dutra Acauan Filho é CMO e Diretor de Produtos na Yaman

**Giovanne Bertotti é especialista em acessibilidade digital na Yaman

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